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Travessia do Mirador. Crédito Acervo NERAUFMA. (1).png

MA

Território Tradicional Travessia do Mirador: 

encruzilhada entre grilagens e economia verde no rastro da expansão da fronteira agrícola

A Travessia do Mirador é uma área de ocupação tradicional no centro-sul do Maranhão com fortes conflitos fundiários pelo menos desde a década de 1970, com a chegada de produtores rurais do Sul do Brasil. Desde 1978, a justiça estadual, no âmbito de uma ação discriminatória ingressada pelo próprio Estado do Maranhão, reconheceu a área como terra devoluta, declarando como ilegais as propriedades reivindicadas por diversos grileiros e demandando que o Estado realizasse a demarcação da área, destinando-a para reforma agrária e regularização fundiária. Ao contrário de cumprir a decisão judicial, dois anos depois, em 1980, o Estado decretou a criação do Parque Estadual do Mirador – unidade de conservação que por princípio não permite a presença de comunidades – sobre as terras tradicionalmente ocupadas.

Mais de 4 décadas depois, as comunidades tradicionais da Travessia e seus descendentes ainda esperam o cumprimento da sentença que reconhece seus direitos e sofrem violências da gestão do parque. No entorno da área do parque, as chapadas são desmatadas para dar lugar a monocultivos. Dentro deste, a grilagem digital e verde avança. 


O caso revela que o Estado do Maranhão agiu com “dois pesos e duas medidas”. Por um lado, deixou de cumprir as suas obrigações de demarcação da área, sendo conivente com a massiva apropriação privada ilegal da Travessia e a grilagem verde, que até os dias atuais são fontes lucrativas para as empresas agrícolas e fazendeiros que promovem intenso desmatamento no seu entorno. E ao mesmo tempo, o Estado promove o cerceamento das práticas tradicionais das comunidades da Travessia, violências e ameaças de expulsão por meio da gestão do parque.

Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

Travessia do Mirador. Crédito Acervo NERAUFMA. (1_1).png

Travessia do Mirador: território tradicional judicialmente destinado à reforma agrária
há 4 décadas

Como sistematizado em processo de Cartografia Social¹ pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias (NERA) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) Maranhão, a Travessia do Mirador é um território tradicional no Cerrado da macrorregião centro-sul do Estado do Maranhão, localizada dentro da Amazônia Legal. É tradicionalmente denominada de “travessia” por representar a passagem entre os rios Itapecuru e Alpercatas. Além das territorialidades indígenas, a ocupação tradicional na região foi se configurando também a partir da chegada de famílias fugindo das estiagens na região do Semiárido cearense e piauiense e vaqueiros que migravam para comercializar gado e se estabelecer nas terras do Maranhão.

[1]

As informações foram obtidas por meio da realização de oficinas junto às comunidades no contexto da realização do projeto de pesquisa “Comunidades Tradicionais, Conflitos Socioambientais e Práticas Participativas de Mapeamento” desenvolvido pelo NERA, em parceria com a CPT, de novembro de 2017 a agosto de 2021, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).

Para produções no âmbito da pesquisa, ver: 

A gente dormiu Travessia e acordou Parque: conflitos territoriais na Travessia do Mirador, MIrador-MA. CPT-MA, São Luís, Edição Independente, 2020, 20p.

Júlia Letícia Pereira Ferreira. “A GENTE QUER VIVER A VIDA QUE A GENTE VIVIA ANTES DO PARQUE CHEGAR”: uma leitura sobre a disputa socioterritorial entre o poder público-privado e as comunidades tradicionais dos rios Itapicuru e Alpercatas. 2019. 64 p. Monografia (Graduação em Geografia) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2019.

Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

As famílias foram se estabelecendo nos vãos (vales) dos rios e produzindo territorialidades muito típicas da vida entre as chapadas e os vales do Cerrado²: a conjugação de práticas agroextrativistas, de criação tradicional de gado e as roças de toco no manejo dos dois componentes da paisagem entre o período chuvoso (quando o gado é levado para pastar nas chapadas) e o período seco (quando o gado pasta nos vãos). Essas diversas práticas tradicionais permitem o manejo dos agroecossistemas, a soberania alimentar das famílias e a geração de renda, por meio da comercialização nas feiras da região, em especial a farinha de mandioca (farinha de puba). A importância da produção da farinha na Travessia para o abastecimento dos municípios próximos é tal que as comunidades são conhecidas na região como os "pubeiros do Itapicuru"³.


O agroextrativismo de frutos do Cerrado – como o pequi e buriti (esse último muito utilizado para a produção de em média 15kg de doce, por família, para venda) – e de raízes e ervas medicinais para ofícios tradicionais de cura compõem as práticas socioprodutivas das comunidades da Travessia. Além disso, o gado, como é comum em sistemas tradicionais, cumpre diversos papéis, dentre eles o de reserva de valor, a poupança para tempos de necessidade. O avanço dos monocultivos sobre as chapadas ao longo das últimas décadas e o cerceamento das práticas tradicionais pela gestão do parque tem provocado rupturas na integralidade do território tradicional e nos modos de vida desenvolvidos ao longo de gerações na convivência com o Cerrado⁴.

Como é possível visualizar no Mapa 01 "Travessia do Mirador", a seguir, há cerca de 78 comunidades identificadas na área sobre a qual foi decretada o parque, especialmente concentradas no entorno norte e sul da Serra do Itapicuru. Entre as comunidades, há uma distância de ao menos quatro quilômetros e cada povoado é ocupado por membros de uma mesma família⁵. 

[2]

Alexandre Gonçalves; Carlos Walter Porto-Gonçalves; Diana Aguiar; Fernanda Testa Monteiro; Helena Lopes; Julianna Malerba; Mauricio Correia; Paulo Rogério Gonçalves; Samuel Britto. A Vida entre as Chapadas e os Vales: Comunidades Geraizeiras, Fechos de pasto e Apanhadoras de Flores Sempre Viva. In: Diana Aguiar; Helena Lopes. (Org.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. 1ed. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e ActionAid Brasil, 2020, p. 32-65. Disponível em: https://campanhacerrado.org.br/saberespovoscerrado

Cartografia Social, supracitado

[3] [4] [5]

MAPA 01

Mapa 1 - PE Mirador e Comunidades.png

A área da Travessia do Mirador que está em conflito com o parque é o foco do presente estudo, mas vale ressaltar o mosaico de terras indígenas (TIs) e assentamentos de reforma agrária na região (ver Mapa 02 "Mosaico territorial"), que, ainda que certamente não representem o reconhecimento pleno dos direitos territoriais dos povos indígenas e comunidades tradicionais e camponesas da região, expressam as lutas e as conquistas desses povos. 

MAPA 02

Mapa 0 - Mosaico territorial MA.png

No entorno norte do parque, as terras indígenas (TIs) em diferentes fases de reconhecimento são expressão da histórica ocupação indígena na região. Uma dessas, a TI Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, tem a demarcação da totalidade do território tradicional sob disputa. Com o massacre da Aldeia Travessia na primeira metade do século XX por grileiros e seus capangas, os sobreviventes se refugiaram na aldeia Porquinhos, há 40 km dali. Várias décadas depois, em 1977, o Estado brasileiro decidiu demarcar a TI e, apesar da reivindicação do território tradicional de 301 mil ha pelos Canela-Apãnjekra, por pressão do regime militar foram demarcados apenas 79.520 hectares. Por essas violências e vícios do processo de demarcação, os indígenas não estavam com a posse integral do território em 1988, sofrendo, portanto, hoje as consequências da tese do marco temporal. 

 

A ampliação da TI para abarcar o território tradicional foi retomada em 2007 com a publicação do relatório circunstanciado e prosseguiu em 2009 com a assinatura da Portaria Declaratória da TI. Logo depois, diversos municípios da região entraram com recurso no Supremo Tribunal Federal (STF), buscando reverter a decisão e alegando “prejuízos econômicos e sociais”. Foram atendidos em 2014 pela 2ª turma, que anulou a Portaria Declaratória a partir da tese do marco temporal. Os indígenas seguem lutando pelo território integral⁶, enquanto aguardam decisão final do Supremo. Com a mudança dos limites do Parque Estadual do Mirador em 2009, o parque passou a se sobrepor a parte do território tradicional indígena e da vizinha TI Kanela Memortumré, cuja demarcação foi travada em 2019 pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro utilizando parecer de 2017 do ex-presidente Michel Temer também aplicando a tese do marco temporal⁷, fazendo com que o processo de demarcação, que já estava em fase final, fosse devolvido à Funai. 

A situação foi agravada pela emissão da Instrução Normativa 09 da Funai em abril de 2020, já no governo Bolsonaro, que permite a certificação de propriedades privadas sobre TIs não homologadas. Como resultado, até o final de 2020, havia 35 certificações aprovadas sobre a TI Porquinhos, 16 delas após a IN 09; nove sobre a TI Kanela Memortumré, todas após a IN 09; e outras 13 que se sobrepõem a ambas as TIs Kanela Porquinhos e Kanela Memortumré, 7 das quais aprovadas após a IN 09. A área sobreposta somava 142 mil hectares, ou 48% da área em demarcação da TI Porquinhos e 34% da área em demarcação da TI Kanela Memortumré. Em razão das sobreposições e avanço do desmatamento na área (como veremos no Mapa "Principais desmatadores"), a liderança da TI Porquinhos, Olímpio Apãnjekra Canela, relembra a área do massacre da aldeia Travessia do início do século XX: “Ali na Travessia diz que eles [os grileiros] já têm campo, já acabaram todo o Cerrado lá, o pé de bacuri, o pé de buriti, o pé de cocunhã. O governo não quer ajudar os povos indígenas. A empresa diz que é dona, mas não é. Nós que somos donos desse lugar, onde massacraram nosso bisavô⁸”.

[6]

Renato Santana. TI Porquinhos: marco temporal impede reparação. In: Revista Porantim. CIMI. Ano XXXVII - No 383 Brasília-DF - março de 2016. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Porantim-383_mar-2016.pdf

[7]

Rubens Valente. Moro usa parecer de Temer e trava demarcação de 17 terras indígenas no país. Folha de São Paulo, 20/01/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/moro-usa-parecer-de-temer-e-trava-demarcacao-de-17-terras-indigenas-no-pais.shtml

[8]

 Tiago Miotto. Certificação de propriedades avança sobre terras indígenas no Maranhão, beneficiando empresas e fazendeiros. CIMI, 21/07/2021. Disponível em: https://cimi.org.br/2021/07/certificacao-propriedades-terras-indigenas-maranhao-in09/

principais desmatadores

A história conflitiva do reconhecimento dos territórios indígenas revela que os conflitos fundiários na região não são recentes. A expansão da fronteira agrícola para os cerrados maranhenses se deu desde cedo pelo instrumento da grilagem, com a intensa chegada de grileiros da região Sul do Brasil, genericamente referidos na região como “gaúchos”. Foi em reação a isso que, em 1977, antes mesmo da criação do Parque Estadual do Mirador (1980), a Procuradoria Geral do Estado do Maranhão ingressou com uma ação discriminatória sobre a área da Travessia do Mirador. A área a ser discriminada, no âmbito da ação, era de aproximadamente 500 mil hectares. Naquele momento, apontou-se um tamanho aproximado, pois o memorial descritivo apresentado pelo Estado do Maranhão não contava com um georreferenciamento mais preciso. O georreferenciamento seria feito no decorrer da discriminatória.

O que é Ação discriminatória?

É curioso notar que quando o Estado ingressa com a ação discriminatória, em 1977, não menciona de nenhuma forma a intenção de criar o Parque Estadual em 1980. Ao contrário, o Estado do Maranhão, desde o início da discriminatória, afirmou de forma categórica que a área descrita, e que hoje incide no Parque Estadual do Mirador, é composta por terras devolutas estaduais e que deveria ser destinada à implementação de uma política de regularização fundiária. Segundo afirmava o próprio Estado do Maranhão no marco da discriminatória em 1977, o objetivo desta ação seria a “defesa do pequeno lavrador vítima dos industriais de ocupação de terras”, e que não caberia “titubear diante dos obstáculos obstinadamente criados pelos grileiros”. Ainda de acordo com a discriminatória: “O Estado não pode parar, nem deve amarrar-se a interesses de grupos que julgam a situação estadual pelo seu ângulo pessoal. Esses grupos contrários aos processos desenvolvimentistas nada mais aspiram do que as satisfações dos seus próprios interesses”. 

Entendendo o contexto da ação discriminatória

Na ação discriminatória, o próprio Estado do Maranhão apresenta uma lista de aproximadamente 300 posseiros/as que deveriam ser chamados para ingressarem no processo e dizerem em que condições ocupam a área e se pretendem ter a regularização fundiária de suas posses. O Estado afirmou de forma muito direta que as famílias que estivessem ocupando as terras de forma legal (ou seja, para a moradia e pequenas plantações de até 100 hectares) seriam regularizadas. Assim, articulados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mirador e pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema), 302 posseiros/as de 68 localidades diferentes, que afirmavam já no fim da década de 1970 ocupar a área do Mirador há mais de 50 anos (em alguns casos), se apresentaram na ação e pleitearam a regularização fundiária. O Estado do Maranhão também requereu que, no âmbito da ação, fosse chamada a Fundação Nacional do Índio (Funai), na dúvida se algumas das famílias que ocupam a área seriam indígenas. A Funai não se manifestou e a discriminatória seguiu sem aprofundar esta dimensão.

 

Também se apresentaram na ação discriminatória pessoas que afirmavam ter propriedades particulares dentro da área discriminada, ou seja, dentro do que hoje foi reconhecido como terra devoluta estadual e que integra o Parque Estadual do Mirador: a Família Lima que, em janeiro de 1978, afirmou ser proprietária de 22.193,60 hectares, que teriam adquirido por herança; e a Família Arruda que reivindicou como sendo de sua propriedade a área denominada de Data Alpercatas, que também teria sido adquirida originalmente por meio de herança e estaria sendo demarcada em um processo judicial. Neste caso, como o processo de demarcação da Data Alpercatas não havia sido concluído ainda, a área não estava definida, não havia sido registrada em cartório, ela não foi reconhecida pelo Estado do Maranhão. 

O que é uma "Data"?

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Grilagem por meio de sentença de inventários

[9]

Joice Bonfim, Débora Assumpção, Juliana Borges, Mauricio Correia e Silvia Helena Coelho. Legalizando o ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da fronteira agrícola no Matopiba. Salvador: AATR, 2020. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/matopiba-estudo-sobre-institucionaliza%C3%A7%C3%A3o-da-grilagem-%C3%A9-lan%C3%A7ado

De acordo com o estudo “Legalizando o Ilegal”⁹, publicado pela AATR em 2020, a grilagem por meio de sentenças de inventários é uma das formas mais comuns e apresenta uma boa aparência de legalidade, já que é reconhecida via sentença judicial, ou seja, pelo próprio Poder Judiciário. No arrolamento de bens da pessoa falecida, faz-se constar “uma posse de terras”, sem registro anterior no Cartório de Imóveis (muitas vezes sem delimitação, sem tamanho e muito menos georreferenciamento - justamente por se tratar de posse), que por meio de sentença do próprio inventário, ou em ações judiciais posteriores de demarcação, são demarcadas e registradas em cartório.

 

Foi desta forma que se constituiu a propriedade da Família Lima, reivindicada no âmbito da ação discriminatória. Após o inventário, a Família Lima ingressou com uma ação demarcatória que, mesmo se tratando de áreas sem registro anterior, ao final reconheceu uma propriedade de mais de 22 mil hectares.


Considerando isso, o Estado do Maranhão, sem uma análise mais aprofundada sobre os documentos apresentados pela Família Lima reconheceu a suposta propriedade e aceitou que a mesma fosse excluída da ação discriminatória. Como veremos no Infográfico "Cronologia", esta área, na prática, não foi de fato excluída pois foi doada ao Estado do Maranhão, com a condição de compensação de reserva legal de outros imóveis e hoje é terra pública estadual, integrante do Parque do Mirador.

 

Já a Data Alpercata, reivindicada pela Família Arruda, consiste em 96.879,7705 hectares na área oeste do perímetro do Parque. Apesar da reivindicação da família ter sido indeferida pela justiça do Maranhão e da Data ter sido considerada terra devoluta estadual já em 1978, incidem sobre a área da antiga Data ainda hoje registros de propriedades privadas no Sistema de Gestão Fundiária - Sigef do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em nome da empresa Agropecuária e Industrial Serra Grande LTDA, conhecida como Agro Serra, do ruralista Pedro Augusto Ticianel, bem como um registro de 42.915,9006 ha em nome de Gilberto Marques Bontempo. Em tempo: A Agro Serra é "parceira" do Estado do Maranhão na gestão do Parque Estadual do Mirador.

Depois de todas estas movimentações, em 24 de outubro de 1978 a ação discriminatória foi julgada e sua sentença publicada. Com isso, foi declarado judicialmente que a área discriminada (em que hoje está o Parque Estadual do Mirador) pertence ao Estado do Maranhão, por se tratar de terra devoluta estadual. A sentença também garantiu os direitos dos posseiros que estavam ocupando a área de forma legal, seja por meio do instrumento da legitimação de posse (de área até 100 hectares) seja pela preferência na compra. Por fim, a sentença determina que o Estado do Maranhão realize a demarcação de toda a área, que identifique os posseiros que a ocupam de forma legal, e que após isso faça o registro da área em nome do Estado. 

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Com a sentença de 1978, há o reconhecimento oficial de que a área sobre a qual hoje incide o Parque Estadual do Mirador é terra devoluta estadual e que os posseiros que ocupam a área historicamente deveriam ter seus direitos garantidos. Mais de 4 décadas depois, isso não só não foi cumprido, como o Estado tem perseguido os posseiros e sido leniente com os grileiros no marco da criação e gestão do Parque estadual, como veremos a seguir.

Travessia do Mirador. Crédito Acervo NERAUFMA. (1).png

 DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS:

inércia do Estado diante da determinação judicial de regularizar a situação dos posseiros, enquanto permite avançar a grilagem e o desmatamento 

Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

Após a publicação da sentença que reconheceu que a área discriminada era de fato terra pública devoluta estadual, o Estado do Maranhão deveria realizar a sua demarcação, ou seja, ir a campo para realizar os trabalhos de georreferenciamento e as marcações dos limites em toda a área de propriedade do Estado. Além disso, com a sentença reconhecendo sua propriedade, o Estado deveria realizar todos os atos necessários para o resguardo e proteção da área.

 

Logo no início, o Estado do Maranhão se mostrou diligente, inclusive noticiando novas tentativas de grilagem na área e requerendo as medidas do Poder Judiciário, como em 23 de julho de 1979, quando informou na ação que na região denominada “Travessia”, localizada na área discriminada houve “gigantesca invasão de terras devolutas no município do Mirador”. Neste momento requer que seja proibida a retirada de cobertura vegetal, construção de cercas, alteração de limites e divisas. Afirma que as invasões estão ameaçando as centenas de posseiros que ocupam a área. E que a pretensão do Estado é legitimar a posse dos posseiros antigos. O juiz à época concedeu o pedido feito pelo Estado, proibindo qualquer alteração de limites e divisas e informando isso às pessoas que foram apontadas como grileiros.

 

Depois deste momento, o Estado do Maranhão abandonou a ação discriminatória, deixou de movimentá-la, não realizou o processo de demarcação, e a partir daí iniciou-se uma verdadeira saga judicial para que o Estado do Maranhão realizasse a demarcação e fizesse o registro no cartório em seu nome. Além disso, contrariando os seus próprios interesses descritos na ação discriminatória (impedir a ação dos grileiros e realizar a regularização fundiária dos posseiros que ocupam a área tradicionalmente), o Estado do Maranhão em junho de 1980, por meio do Decreto Estadual nº 7641, criou o Parque Estadual do Mirador. 

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Em um primeiro momento, as comunidades tradicionais viram a criação do parque como uma potencial solução para os conflitos fundiários que enfrentavam, como aponta o relato de Félix Carreiro, da Comunidade Anjico, ao NERA e CPT-MA no marco da Cartografia Social: "Quando foi criado o Parque em 1980, já existia uma luta da gente da denominada Travessia do Mirador que já era uma área de conflitos com grileiros da região de São Raimundo das Mangabeiras, Formosa da Serra Negra e outros municípios que nem sabemos de onde vinham. Aí em 1980 surgiu esse projeto do Parque pra surpresa da gente e até no tempo a gente até achou uma boa ideia porque aí ao invés da gente estar nas mãos dos grileiros, a gente ia estar em contato com o governo, pensou que ia ficar bom”. 

 

No entanto, o decreto de criação do parque e seus desdobramentos apontam para uma série de ambiguidades e contradições na ação do Estado do Maranhão, que foram complicando a situação fundiária e a realidade vivida pelas comunidades tradicionais na Travessia do Mirador.


Aquela que possivelmente é a maior contradição complicadora da situação fundiária e da realidade vivida pelas comunidades da Travessia é que a ação discriminatória do Mirador e a decretação do parque correm em paralelo por quase 3 décadas, como se não se tratasse exatamente da mesma área. É importante destacar que a criação do Parque Estadual do Mirador somente foi mencionada na ação discriminatória em 2008 (quando pela primeira vez o Instituto de Terras do Maranhão - Iterma se manifestou), ou seja, 28 anos depois da sua criação. Durante todo este tempo, e até os dias atuais, o Estado do Maranhão ignorou a sentença da ação discriminatória de 1978, não fez o georreferenciamento da área e permitiu a proliferação de grilagens e apropriações privadas na área da Travessia do Mirador (como demonstram os mapas que evidenciam as sobreposições). Ao mesmo tempo, atuou de forma violenta contra as famílias que histórica e tradicionalmente construíram suas vidas naquela área, tratando-as como invasoras em seu próprio território e cerceando seus modos de vida sob a justificativa de “proteção ambiental”. A cronologia a seguir demonstra como o Estado foi omisso em relação à proteção do seu patrimônio e, ao mesmo tempo, conivente e atuante a favor das ações dos grileiros que hoje se apropriam da Travessia do Mirador.

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cronologia

Nesse sentido, a criação do parque parece, mais que qualquer outra coisa, uma estratégia para não cumprir a sentença da ação discriminatória que destinava a área para a regularização fundiária dos posseiros. Isso fica evidente quando analisamos que, além de correr em paralelo, o próprio decreto de criação do parque e sua implementação entra em contradição com a sentença da ação discriminatória. O decreto de 1980 de criação do parque reconhece que a área sobre a qual está sendo estabelecido o parque é “constituída por terras devolutas pertencentes ao Patrimônio do Estado do Maranhão e, será oportunamente demarcada para a implementação do disposto no presente decreto”. No entanto, como exposto antes, a ação discriminatória que julgou a propriedade pública da área também determina a prioridade da reforma agrária, por meio da regularização dos posseiros, fato que é ignorado pelo estabelecimento de uma unidade de conservação de proteção integral (parque), modalidade que não prevê a presença de assentamentos rurais. Ao invés de regularizá-los, o Estado, por meio da gestão do parque, passou a assediar os posseiros e realizar ações institucionais contra sua permanência no território, mesmo em face do fato de que a ocupação tradicional já havia sido reconhecida. Assim, a partir da criação do parque em 1980, a sentença de 1978 resultante da ação discriminatória deixou de ser cumprida reiteradamente, tanto pela não demarcação, quanto pela não execução da desapropriação dos grileiros, e mesmo pela não realização da reforma agrária para garantir o direito real de uso dos posseiros sobre suas terras tradicionalmente ocupadas.

 

Soma-se a isso o persistente caos dos limites do parque. O decreto de 1980 estabelece uma área de 700.000 hectares, sendo que as bases cartográficas existentes para o perímetro do parque no Serviço Florestal Brasileiro apontam para 551.474 hectares. Para aumentar a confusão, um decreto de 2009 altera os limites do parque e estabelece uma área ainda maior que o decreto anterior, de 766.781 hectares. A base cartográfica dos novos limites não se encontra em nenhuma base pública, o que implica em falta de transparência e publicidade de informações que deveriam ser amplamente acessíveis. A partir de diálogos informais nos foi transmitida uma base que, pelos cálculos do sistema de informação geográfica, consiste em 499.378 hectares, ou seja, ainda menor do que o tamanho da base de 1980, gerando uma discrepância ainda maior com o tamanho apontado no novo decreto. Cabe perguntar quem ganha com tantas contradições e falta de transparência em relação aos limites e tamanho do parque. Certamente os grileiros. 

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Nesse sentido, a alteração dos limites do parque em 2009 é digna de nota. Seja pelos limites novos ou antigos, há vasta sobreposição de matrículas de imóveis rurais sobre a área do parque. Mas a desafetação da parte leste do parque beneficiou largamente um complexo do agronegócio, ligado a uma subsidiária da empresa japonesa Mitsubishi. Analisando o Mapa "Principais desmatadores", é possível perceber que justamente sobre a área desafetada encontra-se o Complexo Cachimbo (1), cujo principal proprietário, o paranaense Paulo Alberto Fachin, é sócio fundador da Agrex, subsidiária do Grupo Mitsubishi do Japão. Além disso, fica evidente que a desafetação da área promove diretamente o avanço do desmatamento na parte leste do parque.

Principais desmatadores da Travessia do Mirador e seu entorno

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Fazenda Faedo/ União Quinhão

Registrada pelo gaúcho Dagoberto Antonio Faedo, a fazenda é responsável pelo avanço do desmatamento no entorno norte do parque sobre duas terras indígenas que sofrem o impacto da tese do marco temporal. Após a decisão do STF contra os indígenas em 2014, o desmatamento na propriedade reivindicada sobre o território originário acelerou.

 

"A empresa diz que é dona, mas não é. Nós que somos donos desse lugar, onde massacraram nosso bisavô.”

Olímpio Apãnjekra Canela

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Complexo Agro Serra / Pedro Ticianel

Uma das principais empresas de monocultivos no entorno oeste do parque e mesmo dentro deste, a Agro Serra, empresa do ruralista paranaense Pedro Ticianel, é "parceira" do governo do Estado do Maranhão na gestão do parque, mesmo tendo estado envolvida em denúncias de trabalho escravo e reivindicando propriedade sobre terras devolutas estaduais.

Desmatamento

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Complexos Agro Serra / Pedro Ticianel; Cachimbo; e Fazenda Faedo / União Quinhão

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Limite do Parque Decreto 1980

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Limite do Parque Decreto 2009

Complexo Cachimbo

A desafetação da área leste do parque em 2009 favoreceu sobretudo o Complexo Cachimbo, cujo proprietário da maior parte dos lotes, o paranaense Paulo Alberto Fachin, é sócio-fundador da Agrex, subsidiária do Grupo Mitsubishi do Japão, envolvida em denúncias de compra ilegal de terras por estrangeiros e principal promotora do avanço do desmatamento na parte leste do parque.

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A explicação para isso é justamente a relação entre desmatamento e grilagem de terras públicas: o desmatamento (corte raso) é uma ação custosa e o grileiro tende a investir nela caso acredite que será possível consolidar o processo de grilagem no papel, por meio de diversos processos de fraude documental para atestar o destaque do patrimônio público e a transferência para o patrimônio privado, o que geralmente acontece em terras públicas não destinadas¹º. Enquanto a porção leste da Travessia do Mirador constava do ponto de vista da situação fundiária como parque estadual, havia um obstáculo à consolidação do processo de grilagem. Além disso, realizar corte raso de áreas acima de 6,35 hectares (limite a partir do qual o desmatamento é detectável por satélite) dentro de um parque estadual é incorrer em evidente crime ambiental. No mesmo sentido, vale também frisar que a Fazenda Faedo União Quinhão (2) registrada pelo gaúcho Dagoberto Antonio Faedo é responsável pelo desmatamento no entorno norte do parque, sobre as duas terras indígenas que sofrem o impacto da tese do marco temporal. Após a decisão do STF contra os indígenas em 2014, o desmatamento na propriedade reivindicada sobre o território originário acelerou.

[10]

Diana Aguiar e Maurício Torres. A boiada está passando: desmatar para grilar. In: Diana Aguiar e Valéria Pereira Santos (Orgs.). AGRO é FOGO: grilagens, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal. AGRO é FOGO, 2021. Disponível em: https://agroefogo.org.br/a-boiada-esta-passando-desmatar-para-grilar/

Em razão dessa relação direta entre desmatamento e viabilidade da consolidação da grilagem, a situação fundiária da área do parque acaba contendo a expansão do desmatamento por grileiros dentro da Travessia. Assim, a área do parque está tomada por registros ilegais no Sigef do Incra, mas a incidência de desmatamento é baixa, muito provavelmente por essas razões. Na realidade, como veremos na próxima seção, esses registros ilegais têm servido sobretudo a propósitos de grilagem verde, facilitando o desmatamento fora do perímetro do parque. 

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Mapa 3 - Apropriação privada de terras 1 - SIGEF (1).png

Além dos registros dos maiores desmatadores da região que, a partir do entorno, adentram o parque, provavelmente para garantir áreas de reserva legal onde seria por princípio muito difícil desmatar sem responsabilização, há alguns outros registros dignos de nota (ver Mapa 04 "Invasão de terras públicas" a seguir). Atenção para as empresas como a imobiliária, domiciliada no Paraná, 4W Administração de Bens e Investimentos S/S LTDA reivindicando 19.270 ha dentro do Parque ou os impressionantes 42.915 ha reivindicados por Gilberto Marques Bontempo. Todos os registros estão sobrepostos à área do parque e a diversas das comunidades tradicionais da Travessia e por imagens de satélite é possível perceber que não estão sob exploração para monocultivos, o que aponta para seu provável uso para especulação imobiliária e “verde”. Retornaremos a isso na seção 3.

MAPA 04

Mapa 3.1 - Invasão de terras públicas - fazendas e complexos.png

O caso do Complexo Cachimbo configura-se como evidente exceção no que tange à ausência de desmatamento justamente em razão da desafetação da área do parque sobre a área grilada pelas propriedades do complexo. Embora a área não seja de propriedade direta da Agrex e sim de seu sócio fundador, acende-se um sinal de alerta. A Agrex do Brasil S.A. (AGB) e a Agrex do Brasil Patrimonial S.A. (Agrex Patrimonial) respondem a dois processos administrativos¹¹ no Incra que apuram irregularidades na aquisição de terras por estrangeiros e possíveis desconformidades com a Lei 5709/1971 que impõe limitações legais à compra de imóveis fundiários por estrangeiros. Os processos são do ano de 2016, mas pouco avançaram em sua tramitação, havendo apenas ofícios direcionados às empresas Agrex com pedido de informações, que não sabemos ao certo se foram respondidos, pois não há acesso público. Destaca-se que manter os imóveis das empresas em titularidade dos seus sócios brasileiros é uma das principais formas de burlar a aplicação da Lei 5709 e as limitações de aquisição de terras por estrangeiros impostas por esta.

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 Processos administrativos nº 54000.000429/2016-00 e 54000.000167/2016-75, em curso no Incra.

Por fim, queremos destacar a contradição entre a narrativa ambiental e as práticas de defesa dos interesses do agronegócio pelo Estado do Maranhão. O decreto justifica a criação do parque em razão de que em sua área se localizam as nascentes dos rios Alpercatas e Itapecuru, os principais cursos d'água da bacia do Itapecuru, a “mais viável alternativa para garantir água de boa qualidade para o abastecimento pleno da cidade de São Luís” e pelo “potencial para garantir a diversidade genética de espécies típicas dos cerrados maranhenses”. O parque, inclusive, passou a compor a chamada Reserva da Biosfera do Cerrado, reconhecida pela Unesco e ampliada para englobar unidades de conservação do Tocantins, Piauí e Maranhão em 2001. No entanto, o próprio decreto indica que “os solos arenosos das nascentes da bacia do Itapecurú são considerados pouco aptos ou inaptos para o uso agrícola intensivo”, como se a proteção ambiental ali pudesse acontecer justamente por não confrontar interesses do agronegócio. 

 

Ao mesmo tempo, ao redor da área do parque, diversas chapadas com vegetação nativa de Cerrado e entornos de nascentes de rios têm sido tomadas por empreendimentos do agronegócio sem que o Estado faça algo para deter. Ao contrário, uma das principais empresas que desmatam o cerrado para dar lugar a monocultivos no entorno oeste do parque e mesmo dentro deste, a Agro Serra, é “parceira” do governo do Estado do Maranhão na gestão do parque. E isto mesmo tendo estado envolvida em denúncias de trabalho escravo e reivindicando propriedade sobre terras devolutas estaduais. Na seção a seguir, aprofundaremos como essa dimensão contraditória entre a narrativa ambiental do Estado e a defesa dos interesses do agronegócio tem promovido práticas de grilagem verde sobre o Parque Estadual do Mirador. 

Travessia do Mirador. Crédito Acervo NERAUFMA. (2).png

O ATRASO
É LUCRO

grilagem verde, especulação imobiliária e a construção política das comunidades tradicionais como problema ambiental

Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

Como dito anteriormente, em um primeiro momento, as comunidades viram o parque como uma "solução" para os conflitos fundiários que enfrentavam. Mas, ao contrário das expectativas, foram confrontados com um cotidiano de cerceamento de práticas tradicionais, como a criação familiar de gado, as roças de toco, a construção de casas a partir da ampliação das famílias, a construção de pequenas pontes para facilitar o trânsito no território. A Cartografia Social realizada pelo NERA e CPT-MA na Travessia do Mirador traz diversos relatos de situações de terror a partir da atuação da gestão do parque¹². Qualquer uma dessas práticas, típicas da ocupação tradicional da terra no Cerrado, pode ser lida como vetor de devastação ambiental, deixando os comunitários sujeitos a ameaças, multas, assédio e intimidações. O Estado trata as comunidades tradicionais como invasoras em seu próprio território, sendo que há quatro décadas a justiça estadual sentenciou a regularização fundiária das posses dessas famílias. 

 

Um comunitário relata que o agente da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (SEMA) disse que ele não podia construir uma casa, que tinha que morar com o pai, mesmo tendo três filhos. Quando ele insistiu e construiu a casa, recebeu ameaças de que iriam queimá-la. Um pai relata que na época do levantamento dos moradores do parque feito pelo governo, um de seus filhos já era casado e tinha casa e por isso entrou no cadastro. Mas o agente da SEMA disse que se outro filho ou filha sua quiser morar lá, não pode aumentar a família, tem que morar com ele. Um comunitário diz que o proibiram de “botar roça”. Outro relata que estava trabalhando na roça quando agentes da SEMA mandaram parar e “já foi atirando”. Outro homem conta que um agente da SEMA disse que ele não tinha cadastro para morar em sua comunidade, mesmo sendo ele e sua mãe nascidos e criados lá. Conta que seu pai preferiu ir embora por causa do assédio. Outro comunitário relata que construíram uma ponte para facilitar o trânsito no território e logo após encontraram a ponte cortada e incendiada¹³.

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Cartografia Social, supracitado.

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Cartografia Social, supracitado.

Ao longo do tempo, muitas famílias foram saindo da Travessia ou sendo expulsas pelo Estado. Outras ficaram e resistiram. Mesmo tendo seus direitos territoriais garantidos judicialmente, se viram alvo de uma construção política de que são vetores da devastação da Travessia e que devem ser reassentados e educados para a preservação ambiental. Em especial nos últimos anos é possível encontrar notícias da própria SEMA que apresentam essa construção de forma explícita. 

Travessia do Mirador. Crédito Acervo NERAUFMA. (4).png

Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

Em notícia de novembro de 2016 intitulada “SEMA vem atuando firme dentro do Parque Estadual do Mirador”, o Secretário de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais, Marcelo Coelho, é citado dizendo: “As ações são várias. Estamos trabalhando para disciplinar a comunidade que mora na localidade, como forma de preservar a fauna, a flora e as nascentes dos rios Itapecuru e Alpercata”. A notícia chega ao ponto de associar o modo de vida tradicional e a pobreza rural à devastação ambiental, dizendo que “As ações de fiscalização realizadas confirmam que a cultura alimentar da população, a condição social, o baixo nível de escolaridade, têm contribuído, significativamente, para cometimento de crimes contra a flora e a fauna silvestre.” ¹

 

Enquanto os comunitários são tratados como invasores e infratores, o agronegócio é tido como parceiro e aliado da preservação ambiental. Mesmo com o amplo desmatamento nas chapadas no entorno do parque e na porção leste desafetada, sobretudo para dar lugar a monocultivos de soja, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja do Maranhão (Aprosoja MA) foi parceira do Estado em uma ação de “educação ambiental” e de coleta de pilhas e baterias, já que, de acordo com a avaliação dos técnicos da SEMA, há “um grande consumo de pilhas pelos residentes” e que “quando descartadas de forma incorreta se torna um lixo tóxico e pode trazer grandes riscos ao meio ambiente”¹⁵ . Não há no site da SEMA qualquer notícia de preocupação ou responsabilização dos grileiros-desmatadores que, ao indicarem como reservas legais as áreas griladas no interior do parque, ficam “aptos” para devastarem as chapadas da região para plantar soja e se organizam em associações como a Aprosoja. Ao contrário, como sintetizado nas palavras de um comunitário: "Esse negócio dessas leis de preservação, eu não tenho nada contra não. O negócio é que eles deixam muita coisa errada do povo grande e quer descontar na gente.” A mesma contradição está traduzida na fala de outro comunitário: “Companheiro, será que a roça de toco destrói mais que o desmatamento? Eu acho que o desmatamento destrói mais.” ¹⁶

A maior expressão desse comportamento de “dois pesos e duas medidas” por parte do Estado é a relação com a Agropecuária e Industrial Serra Grande (Agro Serra). A empresa sucroalcooleira, que também atua no monocultivo de soja, é do empresário paranaense Pedro Augusto Ticianel. Em uma história já corriqueira dos “gaúchos” que vieram “desbravar” os cerrados do Nordeste, ele chegou à região de Balsas no início dos anos 1980 e se orgulha de ter implantado o primeiro campo de soja acima de 1.000 hectares do Maranhão. Ticianel também afirma que “nunca tivemos um único caso de morte por exaustão no trabalho”¹⁷, um estranho parâmetro para afirmar a qualidade das condições de trabalho da empresa.

 

Talvez Ticianel quisesse afastar a lembrança do fato de que a Fazenda Agrossera, localizada no município de São Raimundo das Mangabeiras (MA), foi fiscalizada em outubro de 2005, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF) e, na ocasião, foram flagrados 103 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Com base no relatório da fiscalização, o Ministério Público Federal do Maranhão (MPF/MA) apresentou denúncia contra seis responsáveis, entre os quais o proprietário Pedro Augusto Ticianel, além de gerentes e aliciadores. A denúncia foi recebida pela Justiça Federal em 16 de maio de 2006¹⁸. 

 

Ticianel, como pessoa física ou por meio da Agro Serra, reivindica 8 propriedades na região da Travessia, parcial ou totalmente inseridas no parque em sua porção e entorno oeste, totalizando cerca de 90 mil hectares. O desmatamento no entorno oeste do parque se concentra em algumas dessas propriedades e mesmo porções desmatadas no interior do parque (noroeste) (ver o Mapa "Principais desmatadores"). Apesar do histórico de crimes trabalhistas e de evidências de grilagem e crime ambiental, a Agro Serra é parceira do governo do Estado do Maranhão na gestão do parque, com a logo da empresa estampando as placas dos postos do Parque Estadual do Mirador, como levantado em campo pelo NERA. Em abril de 2021, a SEMA realizou “ações de vistoria, monitoramento e campanha educativa nas regiões das nascentes dos rios Balsas e Rio Itapecuru” e no Parque Estadual do Mirador. A expedição às nascentes do rio Itapecuru foi guiada por ninguém menos que Pedro Augusto Ticianel¹⁹. Em 2017, o governador Flávio Dino esteve presente na inauguração de uma fábrica de calcário da Agro Serra em Balsas, ocasião na qual trocaram agradecimentos e congratulações.²º

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SEMA vem atuando firme dentro do Parque Estadual do Mirador. SEMA, 3/11/2016. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/sema-vem-atuando-firme-dentro-do-parque-estadual-do-mirador/

[15]

Você sabe o que a SEMA FAZ? Superintendência de Economia Verde. SEMA, 3/03/2020. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/voce-sabe-o-que-a-sema-faz-superintendencia-de-economia-verde/

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Cartografia Social, supracitado.

[17]

 Entrevista com Pedro Augusto Ticianel – Agro Serra. Revista Ecoenergia. Sem data. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/read/40434886/pedro-augusto-ticianel-revista-ecoenergia

[18]

Bianca Pyl. Atlas revira entranhas do trabalho escravo no Maranhão. Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais (UFJF), 7 de fevereiro de 2011. Disponível em: https://www.ufjf.br/ladem/2011/02/07/atlas-revira-entranhas-do-trabalho-escravo-no-maranhao/

[19]

 SEMA promove ações nas regiões das nascentes dos rios Balsas e Itapecuru. SEMA, 23/04/2021. Disponível em: https://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/?p=302985

[20]

 Governador participa de inauguração de fábrica de calcário, em Balsas. Folha do Cerrado, 9/10/2017. Disponível em: https://www.folhadocerrado.com.br/governador-participa-de-inauguracao-de-fabrica-de-calcario-em-balsas/

Travessia do Mirador. Crédito Acervo NERAUFMA. (3).png

É no mínimo estranho que as comunidades tradicionais que deveriam ter tido suas posses regularizadas há 4 décadas sejam perseguidas como invasoras e infratoras ambientais, enquanto empresários que cometem grilagem e desmatamento de terras públicas são parceiros das ações de preservação ambiental do Estado do Maranhão. Mas as contradições entre o uso da narrativa ambiental contra as comunidades e a realidade vivida por elas não param por aí. 

O Parque tornou-se ao longo dos últimos anos palco importante de ações da SEMA e especialmente de sua Superintendência de Economia Verde no marco do Programa Maranhão Verde. O programa foi estabelecido pela Lei Estadual nº 10.595/2017 e é “destinado a fomentar e desenvolver projetos voltados para apoio à conservação e recuperação ambiental”. As famílias beneficiárias selecionadas recebem a “Bolsa Maranhão Verde” e precisam participar de ações de capacitação técnica “sobre o que é preservação e conservação, além de boas práticas de manutenção do ecossistema”²¹. O programa é executado no Parque Estadual do Mirador, por meio do Projeto Berço do Rio Itapecuru, com a participação de 189 famílias do parque²² que recebem cerca de 300 reais a cada dois meses. 

[21]

Você sabe o que a SEMA FAZ? Superintendência de Economia Verde. SEMA, 3/03/2020. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/voce-sabe-o-que-a-sema-faz-superintendencia-de-economia-verde/

[22]

 SEMA entrega cartões do Programa Maranhão Verde. SEMA, 11/04/2019. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/sema-entrega-cartoes-do-programa-maranhao-verde/

Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

Ainda que possa configurar uma importante fonte de renda monetária para as famílias e potencialmente representar o reconhecimento do papel das comunidades tradicionais na conservação, manejo e reprodução da biodiversidade do Cerrado, as ações do programa e a forma como este é apresentado no site da SEMA contribuem para a construção política dos comunitários como agentes da devastação, que precisam ser educados e disciplinados. Há uma postura unilateral de transmissão do conhecimento, na qual quem melhor conhece o território e o protege há décadas tem sua experiência e conhecimentos não reconhecidos e desperdiçados, enquanto são “ensinados” por técnicos da SEMA.

 

Todo esse processo também é reforçado pela discussão de um Termo de Compromisso para a convivência das famílias do Parque, a ser firmado com as famílias residentes e identificar as que desejem ser realocadas em assentamento estadual.²³ É notável que a sentença da ação discriminatória de 1978 é continuamente ignorada. Ao contrário de regularizar as posses das famílias das comunidades tradicionais tal como determinado judicialmente há 4 décadas, o Estado age como se estas estivessem em ocupação irregular da área, devendo ser reassentados. Na Cartografia Social feita pelo NERA e CPT-MA no Parque, um comunitário declara estranhamento com a forma como o processo foi conduzido: participaram da discussão do Termo de Compromisso e repentinamente sentiram que “mudou tudo”, com a discussão passando a ser sobre a proposta de um assentamento estadual em uma terra também na encosta do Itapecuru. Para a surpresa deles, descobriram que a área já está em conflito fundiário²⁴.

Ao não cumprir a sentença judicial da ação discriminatória e estabelecer uma unidade de conservação de proteção integral sobre a área destinada para a reforma agrária, o Estado do Maranhão tem, ao longo dos últimos 40 anos, reiteradamente violado os direitos territoriais das comunidades tradicionais da Travessia do Mirador. Mesmo tendo direito à regularização fundiária de suas posses, as comunidades têm participado das discussões no marco do parque, inclusive reivindicando a criação do Conselho Gestor e a elaboração do Plano de Manejo do Parque²⁵. No entanto, têm vivido uma realidade de cerceamentos e a sua representação como vetores da destruição do Parque. Enquanto isso, as chapadas do entorno estão tomadas por grileiros e desmatadores, que são vistos como parceiros nas ações de “conscientização ambiental” das comunidades tradicionais.

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 SEMA discute termo de compromisso para convivência das famílias do Parque Estadual do Mirador. SEMA, 12/04/2018. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/sema-discute-termo-de-compromisso-para-convivencia-das-familias-do-parque-estadual-do-mirador/

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 Cartografia Social, supracitado.

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Governo realiza primeira audiência pública para discutir a gestão e situação atual do Parque Estadual do Mirador. SEMA, 29/01/2016. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/governo-realiza-primeira-audiencia-publica-para-discutir-a-gestao-e-situacao-atual-do-parque-estadual-do-mirador/

Considerando que a sentença de 1978 já transitou em julgado, ou seja, não cabe mais qualquer tipo de recurso e deve ser cumprida, não é realista pensar que os grileiros possam revertê-la. Assim, ao ignorá-la e estabelecer o parque e as diversas ações supostamente ambientais contra as comunidades, o Estado do Maranhão permite que na prática os grileiros ganhem tempo e novas oportunidades de lucro, em especial aquelas relacionadas à grilagem e especulação verde. 

 

Apesar da área estar com situação fundiária estabelecida como sendo terra pública destinada como unidade de conservação, isso não tem impedido o Incra de ilegalmente permitir o registro de propriedades privadas no Sigef ou Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI) sobre a área. Soma-se a isso o caráter autodeclaratório do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) e a falta de verificação por parte da Sema e temos uma receita para que a sobreposição de registros nas três bases sobre o parque e as comunidades tradicionais do parque gerem um verdadeiro caos de registros fundiários e ambientais na área.

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Maranhão - Caos Fundiário no Parque Mirador.png

Considerando a impossibilidade de consolidar a grilagem feita nas bases digitais em ocupação da terra para monocultivos sem mudar a situação fundiária do parque, cabe perguntar qual o sentido da manutenção desses registros flagrantemente ilegais por parte dos grileiros. Uma pista para a resposta pode ser encontrada numa fala do empresário Pedro Augusto Ticianel em entrevista, alegando ter a maior “quantidade de terras particulares averbadas para reserva ambiental permanente no Estado do Maranhão”²⁶. Ticianel reivindica no Sigef propriedade sobre milhares de hectares em imóveis sobrepostos ao parque e às comunidades tradicionais. Essas áreas reivindicadas por ele, com exceção de uma porção na parte noroeste do parque, estão com cobertura vegetal nativa do Cerrado, o que significa que não estão sendo exploradas economicamente por projetos de monocultivo. Mas, diante da leniência do Incra ao permitir registros ilegais no Sigef e da falta de verificação dos registros autodeclarados no Sicar, abre-se um mercado de grilagem verde e especulação, que tem encontrado no Parque Estadual do Mirador um espaço lucrativo.

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 Revista Ecoenergia, supracitada.

Se tomarmos como referência os limites atuais do parque (decreto de 2009) que, a partir do cálculo da base cartográfica chega a pouco menos de 500 mil hectares, vemos que há mais hectares em registros no Sicar (511.366 ha) do que os realmente existentes no próprio perímetro do parque. Além disso, cerca de 35% da área atual do parque (176.611 ha) está registrada como Reserva Legal. Esse processo é facilitado pelo fato de que o Código Florestal permitiu que áreas não contíguas às “propriedades” sendo cadastradas possam ser registradas como sua reserva legal. Assim, supostamente cumprindo a obrigação de preservar sua reserva legal em outra parte, esses empreendimentos desmatam as porções que anteriormente mantinham como reserva legal. 

 

Como o Sicar não preza pela transparência das informações, não disponibilizando os dados de quem reivindica o cadastro, não é possível apresentar casos concretos sobre a autoria dos registros de Cadastro Ambiental Rural (CAR) na área do parque, mas não seria difícil deduzir que muitos registros dentro da unidade de conservação estão sendo usados como reserva legal para permitir o avanço do desmatamento no entorno do parque e até em outras localidades. Vale lembrar como a antiga Data Cachoeira ou Pindaíba (na área sudeste do parque) foi reconhecida em nome da Família Lima na sentença da ação discriminatória (1978) e posteriormente (2011) foi doada ao Estado do Maranhão, como condição de compensação de reserva legal de outros imóveis  (ver Infográfico "Cronologia").

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Mapa 5 - Apropriação privada de terras 3 - CAR (3).png

A estratégia está desenhada de forma explícita nos anúncios de venda de imóveis rurais dentro do parque que podem ser encontrados na plataforma OLX. Com meia dúzia de anúncios ativos do tipo no momento da realização da presente pesquisa, é possível encontrar um padrão. Todos afirmam de forma aberta estarem localizados dentro do Parque Estadual do Mirador e com área “devidamente registrada no cartório de registro de imóveis”, o que viola frontalmente tanto a sentença da ação discriminatória como a própria lei de registros públicos (Lei 6015/1973), que não permite o registro de propriedade “particular” em terra pública. Outros também asseguram que a área tem “georreferenciamento certificado” e CAR. Além do anúncio de venda de um título claramente ilegal, o esquema da grilagem verde é escancarado, com todos sem exceção explicitando o objetivo de compensação de reserva legal ou garantia real para empréstimos. Um dos anúncios chegava a detalhar que a compensação pode acontecer em “qualquer estado do bioma” Cerrado, outro falava em “sequestro de carbono no bioma Cerrado” e ainda outro em “créditos de carbono”.

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Com o comércio de títulos ilegais sobre terras devolutas estaduais dentro do Parque Estadual Mirador para fins de burlar a obrigação de manter a reserva legal obrigatória em outros imóveis rurais acontecendo de forma tão flagrante, cabe perguntar por que o Estado do Maranhão não desmonta os esquemas de grilagem e estelionato que envolvem diversos agentes, como cartórios da região e imobiliárias. Ao contrário, na prática, vemos como a narrativa ambiental é utilizada contra as comunidades tradicionais que têm direitos territoriais sobre e conservam a Travessia há décadas, enquanto essa mesma narrativa é apropriada de forma oportunista por grileiros, especialmente a partir do Código Florestal de 2012, para novas oportunidades de negócio. 

 

Neste sentido, a não execução da sentença da ação discriminatória, conjugada com as ações de “preservação ambiental” do Estado – como o estabelecimento do parque e o disciplinamento das comunidades – tem permitido atrasar a regularização fundiária dos posseiros e ganhar tempo para os grileiros. O atraso para os grileiros, nesse caso, é lucro. Para as comunidades tradicionais vai constituindo um processo de constante desassossego e desesperança de ver seus direitos territoriais realizados.

Diana Aguiar é pesquisadora de Pós-Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

 

Joice Bonfim é secretária executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, advogada popular e mestra em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

 

Antonio Gomes de Morais (Criolo) é agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e coordenador da equipe em Balsas, no Maranhão.

 

Eduardo Barcelos é professor do Instituto Federal (IF) Baiano, Campus Valença - Bahia e Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro do Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da Bahia (OBSUL / IF Baiano).

 

Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima é professora do Departamento de Geociências - DEGEO da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias - NERA.

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